terça-feira, 22 de abril de 2014

Crônica Hiperbólica da Indiferença

CRÔNICA
Por Caio Oleskovicz.
Esta é uma história de ficção. Ou não.



Esses tempos, eu tava na frente do metrô com a minha cara de habitual indiferença. Sabe como é, você não pode ficar se importando muito com as pessoas à sua volta, porque entra em parafuso. A gente vê de revesgueio a senhora com criança doente, o deficiente visual que não obtém ajuda, o menino que empurra a pessoa à sua frente só para se divertir, mas não pode dar muita bola para nada disso. E eu ouvia meu jazz – me sentindo tão absurdamente ‘cult’ – enquanto a interação social corria solta à minha volta.

Era horário de pico e o metrô estava, como é óbvio, entupido. Eu já parei de me importar com isso, sabe? Não adianta muito lutar por transporte melhor, não há como melhorar. Então, o que sobra é aceitar o que temos, e dar graças a Deus por não termos coisas piores. Embarquei no trem e vi uma pessoa caída no chão. Estirada. As pessoas olhavam com nojo; evitavam placidamente chegar perto. Tratava-se, pensavam, de um bêbado; vestia-se bem, mas estava amarrotado, sujo. Mas o homem com os olhos fechados me perturbou. Me fez lembrar de Chico Buarque e de Construção, de “morreu na contramão atrapalhando o tráfico”. Não, eu tinha de fazer algo. Mas... Todos tinham e todos ignoravam. Decidi que seria melhor deixar quieto, sabe? Obviamente alguém chamou a assistência do Metrô para tirar aquele cidadão dali.

Desci no Pinheiros e em quinze minutos estava no trabalho. Entrei à minha sala, ainda ouvindo música – sairia depois para cumprimentar meus colegas, embora tal interação seja apenas para estar nos conformes das normas-padrão de escritórios, pois, a rigor, não faz diferença nenhuma – e arrumei um pouco minha mesa. Ia entrevistar um candidato à estagiário, nove e meia, e precisava dar um trato na organização da sala.
Eram nove e meia e nada do dito cujo chegar. Já havia dado meu polido “bom-dia” aos colegas de trabalho e até surrupiado um café do telemarketing. Dez horas estava fulo da vida – como um estagiário quer ser contratado se não obedece o horário sequer da entrevista? Resolvi deixar quieto. Ele chegou, dez e quinze, afobado; estava num terno esplendorosamente horrível, seu rosto mal barbeado. Balbuciou que tinha tido um problema no metrô e eu sorri condescendente. Disse-lhe que, infelizmente, a vaga já estava ocupada; quem havia chegado depois dele fora contratado (“talvez isso lhe dê uma lição”, pensei, cheio de pompa). Ele ficou com um rosto desesperado; pude notar a angústia em cada linha do rosto do homem (não era mais um menino). Suspirou, porém, agradeceu-me e pediu desculpas pelo atraso. Virava-se para ir embora, quando a minha secretária apareceu na porta.

 - Doutor – ela disse, parecendo tímida. – Ele é meu marido. Será que não podemos lhe dar uma chance? É um bom profissional e entregou-se ao Direito. Estuda muito... E estamos com problemas financeiros. Eu que recomendei que mandasse o currículo para cá...

Suspirei, extasiado. Para começo de conversa, não gosto do título e ela está o usando para me bajular. E... Eu tenho cara de instituição de caridade? Essa é a história de tantos; se for dar uma chance a cada um nessa situação, a empresa declara falência.

 - Não, Grazi. Infelizmente há outra pessoa para a vaga. Por que não chegaram juntos?

Ela começou uma lengalenga de como ele havia passado a noite acordado e ela saiu mais cedo porque ele precisava de um banho, e eu parei de prestar atenção lá pela quinta palavra. Sorri, afetuosamente, e declinei novamente.

O resto do meu dia transcorreu-se normalmente. Ela manteve sua atitude respeitosa de sempre, foi embora pontualmente às 18 e eu fui para a academia.

No outro dia, ela não foi trabalhar. Desconfiado, tentei ligar-lhe várias e várias vezes, e não obtive respostas. Havia algo latejando na minha cabeça. Aquela sensação de ter algo e deixá-lo escapar. Como se eu houvesse perdido algo.

A sensação não passou e nada da menina ir ao trabalho. Dois dias, depois dez. Abri a vaga para secretárias e contratei outra pessoa, ainda interessado no destino da Grazi.

Muito tempo depois, vendo TV (aberta, eca) num restaurante onde alguns de meus colegas almoçavam, vi que uma jovem havia sido esquartejada e seu corpo espalhado por São Paulo. Mas, ora! Aquela era minha ex-secretária! Vocês podem imaginar o pânico que me invadiu. Imediatamente desejei ter sido mais compreensivo naquele dia; meu ânimo esfarelou-se, e eu desejei vingança. Fiz ligações, fui à polícia, e quando perguntei do caso o delegado me disse casualmente:

 - O senhor está enganado. Essa moça não era secretária de um escritório, era uma puta qualquer.

Pisquei. Ao ler o nome, vi que era realmente minha secretária. Então...?

Havia muito a ser pesquisado, mas se entro em alguma história, imagino que é para vencer. E fui atrás do que aconteceu.

Quando entendi toda a história, muito depois, precisei caçar autocontrole para não tentar o suicídio.

Eis que era o marido – e meu pretenso estagiário – aquele que encontrava-se desacordado no metrô. Ele havia passado mal na vinda, por ter ficado em claro à noite estudando. Com a decepção de ser rejeitado sem sequer uma conversa, na volta novamente passou mal, mas dessa vez não havia vivalma (havia gente no metrô, mas não uma alma viva de fato) para resgatá-lo. Faleceu decorrido a este mal súbito. A menina estava grávida. Ao saber, entrou em desespero; começou a faltar o trabalho, e quando tentou ir, ficou sabendo que eu a substituíra sem pensar muito. Ainda mais desesperada, decidiu trabalhar de alguma maneira para sustentar-se e ao filho que estava por vir. Acabou decidindo pela prostituição. Em um dia de serviço, simplesmente teve um fim macabro. E acabou.

Eu havia destruído aquelas vidas simplesmente pela minha soberba e indiferença. Quantas mais? Por que foi necessário um acontecimento tão trágico e hiperbólico para me acordar?

E depois de tudo, eu sento e penso: Eu poderia algum dia me perdoar por isso? Por não olhar para as coisas, por não me importar com os outros? Como tantos...?


É possível quantificar se cada um de nós interfere na vida do outro?

2 comentários:

Ringo disse...

Uau. Uau. Uau. Pelos deuses, ainda que seja ficção é tão provável que arrepia de qualquer modo. Mas, de novo, podemos/devemos tomar a responsabilidade por uma borboleta que bate as asas e causa um furacão do outro lado do mundo?
Uau.

Ringo disse...

Uau. Uau. Uau. Pelos deuses, ainda que seja ficção é tão provável que arrepia de qualquer modo. Mas, de novo, podemos/devemos tomar a responsabilidade por uma borboleta que bate as asas e causa um furacão do outro lado do mundo?
Uau.